RESEX-MAR ITAIPU:CONFRONTOS E CONFLITOS

  Por Gerhard Sardo*

  A idéia de criação da Reserva Extrativista Marinha (RESEX-MAR) Itaipu surgiu em 1989, quando um funcionário do IBAMA e um professor da UFF contactaram o então presidente interventor da Colônia de Pescadores Z-7, tendo, depois, sido levado o "projeto" ao conhecimento da Secretaria Municipal de Ciência e Tecnologia de Niterói em fevereiro de 1997 e, logo, ao CNPT/IBAMA. Formalmente, a solicitação se deu com um abaixo-assinado de pescadores com apenas 141 signatários, sem identificação de autoria ou data.

  Curiosamente, a proposta da RESEX-MAR Itaipu parece ter sido consubstanciada por uma dissertação de mestrado, defendida em 1978 no Museu Nacional da UFRJ, de autoria de um ilustre antropólogo que hoje desponta como assessor técnico, consultor institucional e apoiador no desenvolvimento e implementação do projeto em análise no CNPT/IBAMA. Por outro lado, e paralelamente, pesquisadores vinculados aos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política e em Biologia Marinha da UFF - também assessores do projeto RESEX-MAR Itaipu - conquistaram junto ao Comitê de Ciências Ambientais (CIAMB), do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PADCT), do Ministério da Ciência e Tecnologia, recursos da ordem de R$320.000,00 (trezentos e vinte mil reais), destinados a equipamentos, bolsas de iniciação científica e bolsas para a comunidade local, através de projeto intitulado "Mecanismos Reguladores da Produção Pesqueira na Região de Itaipu:subsídios para gestão de uma reserva natural extrativista marinha". Naquele período havia também a previsão de um estudo detalhado quanto a elaboração e implantação do Plano de Utilização da RESEX-MAR Itaipu que, naquele momento, seria viabilizado por meio de uma associação por meio do convênio CAPES/COFECUB mantido entre a UFF e a Universidade de Paris X, Nanterre, França. Em meio a conexão internacional para viabilizar a criação da RESEX-MAR Itaipu, chama a atenção conteúdo de documento registrado junto ao CNPT/IBAMA, onde consta a seguinte passagem:"Para tal, propõe-se criar durante os primeiros anos uma assessoria técnica permanente e uma consultoria de alto nível, que auxilie e participe da elaboarção, implementação e gestão do Plano de Utilização, recolhendo dados, assistindo e participando de discussões técnicas e políticas com a comunidade, elaborando e publicando documentos, sempre que solicitada, disponível para intervir criticamente no processo de administração da RESEX. Daí a necessidade de apoio acadêmico e institucional, representado desde já pelo Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP) do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da Universidade Federal Fluminense, com uma extensa experiência sociológica e antropológica em comunidades de pesca do estado do Rio de Janeiro e na área de segurança pública e administração de conflitos, a que se junta o Departamento de Biologia Marinha da mesma universidade, os quais, inclusive, já tiveram aprovado projeto conjunto pelo subprograma CIAMB do PADCT/MCT,..."

  A proposta original da RESEX-MAR Itaipu, onde as evidências indicam que parece ter sido desenvolvida por doutos da academia, onde apenas 30% do universo total de pescadores em atividade na região foram consultados, reivindica "a concessão do direito real de uso de um cinturão pesqueiro entre a divisa Niterói/Maricá, conhecida por Bananal, e a entrada da Baía de Guanabara, incluindo a faixa marinha de três milhas da costa de Itaipu",delimitadas por coordenadas geográficas já devidamente demarcadas em carta nautica. Nesta área, segundo consta no CNPT/IBAMA, "só será permitida a prática da pesca artesanal por pescadores da região, devidamente cadastrados no IBAMA".

  Em contraponto a iniciativa de acadêmicos, 210 pescadores tradicionais subscreveram abaixo-assinado contrário a criação da RESEX-MAR Itaipu. No mesmo ano, em 1999, a Colônia de Pescadores Z-8 já dispunha de 1.000 signatários em manifesto contra a proposta. Logo, em audiência realizada pelo Conselho Comunitário da Região Oceânica de Niterói - CCRON, em 22/04/99, entidades representativas dos pescadores se colocaram publicamente contra a aprovação da proposta encaminhada ao CNPT/IBAMA, destacando-se: Colônia de Pescadores Z-7; Associação Livre dos Pescadores e Amigos da Praia e Lagoa de Piratininga - ALPAGOA; Federação dos Pescadores do Estado do Rio de Janeiro - FEPERJ; Associação Livre dos Maricultores de Jurujuba; e Sindicado dos armadores de Pesca do Estado do Rio.

  Não resta dúvida que o conflito em torno da RESEX-MAR Itaipu teve sua origem a partir de 1999, quando a classe de pescadores foi totalmente ignorada pelo CNPT/IBAMA em seus reclames.

  Em 15 de abril de 2005, o IBAMA promoveu primeira reunião para retomada dos estudos para a implantação da RESEX-MAR Itaipu, oportunidade em que um representante do CNPT declarou reaberto o processo de criação da referida unidade de conservação de uso sustentado através do processo nº 02001002808/2004-89. Com a atitude, unilateral, por sinal, foi revista a insatisfação de importantes e significativos segmentos de classe de pescadores, a seguir:

  "A Colônia Z-7 não concorda com a criação da reserva nos moldes apresentados até o momento, principalmente pela falta de adequação da lei de criação de reservas extrativistas è realidade de um centro urbano.Pescador não é seringueiro" (Aurivaldo José Almeida, o Barbudo, presidente eleito da Colônia de Pescadores Z-7, em 05/04, jornal Ecoceânico)

  "A criação da reserva está sendo conduzida por pessoas que não tem nada a ver com a pesca.É preciso, sim, criar um plano de manejo, com regras adequadas à nossa realidade" (Gilberto Alves, presidente eleito da Colônia de Pescadores Z-8, com 12.000 pescadores profissionais associados, em 20/06/04, jornal O Fluminense)

  A partir de então, foram realizadas pelo IBAMA 10 reuniões, segundo consta em trabalho intilulado "MEMÓRIA" do processo de implantação da RESEX-MAR Itaipu, datado de 23/11/04.

  Antes dessa iniciativa governamental, contudo, a Colônia de Pescadores Z-7 já manifestava descontentamento com a possibilidade de desarquivamento do projeto da RESEX-MAR Itaipu. Em 26/01/04, questionou junto ao IBAMA a legitimidade do processo, e não foi respondido. Então, em 01/06/04, solicitou esclarecimentos, de caráter jurídico e administrativo, e também não foi respondido. Depois, em 03/08/04, perguntou sobre os fundamentos da proposta e novamente ficou sem resposta.

  Sem a quem recorrer, a Colônia de Pescadores Z-7 solicitou a intervenção da APEDEMA/Regional Leste, que convocou uma reunião extraordinária em 28 de março de 2005, realizada na sede da APREC Ecossistemas Costeiros, localizada na Rua Macário Picanço 825, Itaipu, Niterói , RJ, onde contou com a participação de Elza da Conceição Ferreira (Conscientização no Trato de Animais Domésticos de Maricá – CTADM), Regina do Couto Rabello (Movimento Ecológico de Itaipuaçu – MEI), Penha Maria Rodrigues (ECO Cultural JM), João Madeira (Associação de Moradores e Amigos do Vale da Penha – AMAVAPE), Otto Cristóvam dos Santos Sobral (Colônia de Pescadores Z-7), Fábio Ferreira Neto (Secretaria Regional de São Francisco), Auriovaldo José Almeida (Colônia de Pescadores Z-7), Sueli Pontes (SOS Lagoas), Gerhard Sardo (Coordenação APEDEMA/Regional Leste), Gílson César (Piratininga Unida Moradores Associados – PUMA) e Sérgio de Mattos Fonseca (APREC Ecossistemas Costeiros), tendo por objetivo avaliar a então situação técnica, jurídica e administrativa da proposta de criação da RESEX-MAR Itaipu em área marítima contígua aos bairros de Itacoatiara, Itaipu e Piratininga. Naquela oportunidade, foi lembrado que foram convidados para participar da mesma todas as entidades filiadas à APEDEMA-RJ com sede nos municípios de Niterói, Maricá e São Gonçalo, bem como o senhor Walter Plácido Teixeira Júnior, na qualidade de assessor técnico da Gerência Executiva (GEREX) do IBAMA-RJ e representantes da Associação Livre dos Pescadores da Praia de Itaipu – ALPAPI para discutir a questão.

  Ao final da reunião extraordinária, foi definido posicionamento contrário da APEDEMA/Regional Leste referente à proposta de criação da RESEX-MAR Itaipu, com base na Lei Federal nº 9.985/00, em seu art.22, parágrafo 2º, no Decreto Federal nº 4.340/02, em seu art. 4º, no Decreto Federal nº 98.897/90, e em deliberação do Conselho Consultivo do IBAMA/CNPT, aprovada em sua IV Reunião Ordinária, realizada em 25/02/94, tendo sido encaminhado ao IBAMA, em 01/04/05, documento sob nº 02022.001285/05-89 solicitando esclarecimentos sobre os procedimentos que sustentam a proposta. Documento não foi respondido.

  Em 03/05/05, 19 entidades representativas da sociedade civil, entre elas a quase totalidade das organizações oficiais da classe de pescadores em nível municipal, estadual e nacional, subscreveram e encaminharam ao IBAMA documento, sob nº 02022.001584/05-50, solicitando o arquivamento do processo de criação da RESEX-MAR Itaipu.

  Sem resposta junto ao CNPT/IBAMA, as entidades contrárias recorreram a membros do Poder Legislativo em diversos níveis, obtendo, então, os requerimento de informações nº 296/05 (Câmara Municipal de Niterói) e nº 2.770/05 (Câmara Federal). Finalmente, em resposta a Câmara Federal, a Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, através do ofício nº 1016/2005/GM/MMA, de 04/07/05, encaminhou conteúdo do ofício CNPT/IBAMA nº 172/05, de 30/05/05, prestando as seguintes informações:

  1 - Solicitação: cópia das atas de todas as audiências, reuniões e exposições públicas promovidas pela Gerência Executiva do IBAMA-RJ e pela secretaria-Executiva do GT RESEX-MAR Itaipu. RESPOSTA: "Conforme solicitado, estamos encaminhando cópias das audiências, reuniões e exposições públicas realizadas até hoje e constantes do processo";

  2- Solicitação: estudo técnico-científico que comprove: a) as carcterísticas naturais ou exemplares da biota que possibilitem a exploração sustentável na área proposta para a criação da RESEX-MAR Itaipu, sem prejuizo da conservação ambiental; b) a existência de uma população tradicional extrativista na área proposta para a criação da RESEX-MAR Itaipu. RESPOSTA:"Quanto aos estudos técnicos científicos destacamos que no processo consta apenas o estudo sócio econômico 9do qual encaminhamos cópia) que, devido à data de sua elaboração, necessitaria de uma atualização em relação a seus dados";

  3 - Solicitação: lista dos beneficiários diretos e indiretos da criação da RESEX-MAR Itaipu. RESPOSTA:"Quanto a lista de beneficiários da Resex, esta só será conhecida plenamente após o cadastramento dos moradores da área, ação ainda não realizada";

  4 - Solicitação: minuta de contrato de concessão de direito real de uso, a ser firmado com os membros da população tradicional extrativista, es esta existir na área.RESPOSTA:"As minutas do contrato de concessão de direito real de uso da área ainda não foram elaboradas, tendo em vista o estágio inicial em que se encontram os estudos sobre a área";

  5 - Solicitação: indicadores da viabilidade econômica da manutenção da RESEX-MAR Itaipu. RESPOSTA:"Os indicadores de viabilidade econômica da Resex não foram explicados no laudo sócio econômico elaborado em 1999, motivo pelo qual os dados deverão ser complementados";

  6 - Solicitação: cópia do ato legal que originou e orientou o processo de criação da RESEX-MAR Itaipu.RESPOSTA:"O ato legal que originou o processo de criação da esex foi um abaixo assinado das comunidades residentes na área (cópia em anexo)";

  7 - Solicitação: lista dos integrantes do GT RESEX-MAR itaipu. RESPOSTA:"A lista das entidades integrantes do grupo de trabalho da Resex pode ser encontrada nas folhas iniciais do projeto da Resex existente no processo (cópia em anexo)";

  8 - Solicitação: proposta de localização, dimensões e limites da RESEX-MAR Itaipu. RESPOSTA:"Existe no processo apenas uma proposta preliminar de limites da Resex, sem uma lista de pontos georeferenciados e um memorial descritivo completo";

  9 - Solicitação: minuta de projeto de lei ou decreto de criação da RESEX-MAR Itaipu e respectiva exposição de motivos, assim como anexos que compõem a proposta. RESPOSTA:"As minutas do decreto de criação da unidade de conservação ainda não foram elaboradas devido a exigüidade de dados técnicos disponíveis e a insipiência dos estudos";

  10 - Solicitação: Certidão ou declaração de nada a opor da Capitania dos Portos, Autoridade Aeronáutica e Agência Nacional de Petróleo. RESPOSTA:"As consultas aos órgãos mencionados ainda não foram realizadas devido à ausência de dados georeferenciados";

  11 - Solicitação: cadastro atualizado dos pescadores profissionais com residência nos municípios de Niterói e Maricá. RESPOSTA:"O cadastramento dos pescadores profissionais dos municípios contíhuos a Resex ainda não foi realizado";

  12 - Solicitação: declaração das colônias de pescadores Z-7 e z-8 quanto a estarem de acordo com a proposta de criação da RESEX-MAR Itaipu. RESPOSTA:"Quanto a declaração das colônias estando de acordo com a criação da Resex, informamos que consta do processo manifestação da colônia de pescadores Z-7 neste sentido".

  Considerando a "resposta oficial" do CNPT/IBAMA à Câmara Federal, e o desprezo demonstrado aos pedidos de informações ofertados pela sociedade civil, em especial aqueles subscritos pela Colônia de Pescadores Z-7, vale fazer algumas observações, tais como:

  1 - As Reservas Extrativistas podem ser criadas em áreas onde simultaneamente existam: 1) populações extrativistas; 2) recursos naturais que possam ser utilizados de maneira sustentável; 3) interesse ecológico e social, isto é, áreas importantes para a população e que vale a pena proteger do ponto de vista dos recursos naturais;

  2 - O pedido de criação de uma RESEX deve ser destinado ao IBAMA/CNPT (Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais) em documento assinado por entidade que represente os extrativistas (criada para esse fim), especificando em anexo: 1) o número de extrativista residentes da área; 2) a quantidade de produtos de origem extrativista por ano; 3) as linhas de comercialização dos produtos e preços; 4) os limites propostos para a reserva; 5) manifestação dos moradores das intenções quanto a utilização dos recursos naturais. Ao que consta, no projeto da RESEX-MAR Itaipu não se especificou nenhum dos pré-requisitos exigidos junto ao IBAMA/CNPT, descaracterizando, com isso, o valor sócio-ambiental da proposta inicial;

  3 – Após o recebimento do pedido de criação de uma RESEX, por parte de entidade que represente os extrativistas, caberia ao IBAMA/CNPT verificar, através de vistoria: 1) a situação demográfica e as tradições culturais das populações; 2) uso dos recursos naturais, ocupação principal e fontes de renda, quantidades de produtos extraídos e preços obtidos; 3) a existência de atividades não-extrativistas na área; 4) a situação fundiária; 5) a infra-estrutura existente (transporte, educação, saúde, comunicação, habitação). Até o momento nenhuma das características preliminares que justifiquem a criação da RESEX-MAR Itaipu foram comprovadas e apresentadas pelo IBAMA/CNPT;

  4 – Uma vez realizada a vistoria na região proposta para criação RESEX, caberia, também, ao IBAMA/CNPT complementar as informações com: 1) dados planialtimétricos e geográficos; 2) laudo biológico da área; 3) levantamento socioeconômico; 4) registro fotográfico; 5) justificativa legal; 6) dados bibliográficos técnicos e científicos sobre a área. Situação surrealista, se levarmos em conta que o IBAMA/CNPT sequer conclui a fase preliminar do processo de análise e comprovação da necessidade de criação da RESEX-MAR Itaipu;

  5 – Finalmente de posse de todos os documentos previamente analisados, caberia ao IBAMA/CNPT formalizar processo administrativo para a criação da RESEX, acompanhado de minuta de decreto de criação e a exposição de motivos.Teria início, então, a consulta pública. A proposta de criação da RESEX-MAR Itaipu inverteu o encaminhamento processual, tornando a discussão do tema estéril por não possuir nenhum fundamento técnico ou científico devidamente comprovado pelo IBAMA/CNPT.

  6 – Não resta dúvida que compete exclusivamente ao IBAMA/CNPT elaborar e apresentar à população os estudos técnicos preliminares indicando a necessidade de criação da RESEX-MAR Itaipu;

  7 – Á inequívoca situação de desencontro administrativo por parte do IBAMA/CNPT, soma-se a inexistência de qualquer ato normativo (portaria, resolução), devidamente publicado no Diário Oficial da União – DOU, por parte da GEREX IBAMA-RJ reconhecendo o Grupo de Trabalho (GT) RESEX-MAR Itaipu. O caráter informal do referido GT, evidencia a situação irregular de todo o processo institucional motivado pelo trabalho voluntário da sociedade civil;

  Concluindo, se até o momento, 6 (seis) anos após o início das discussões em torno da RESEX-MAR Itaipu, não foram apresentados e comprovados pelo IBAMA/CNPT os indicadores técnicos e científicos, bem como o apelo do conjunto de entidades de classe dos profissionais da pesca com atuação nos municípios de Niterói e de Maricá, em favor da proposta de criação da referida unidade de conservação de uso sustentável em área marítima contígua aos bairros de Itacoatiara, Itaipu e Piratininga, não há dúvida que o que se está se pretendendo com esta proposta é viabilizar somente uma fácil e bem articulada conexão para captação e manipulação de recursos e um simplório palanque político para os padrinhos daqueles que hoje tanto se esforçam pela sua aprovação.

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* Gerhard Sardo é jornalista, analista ambiental, coordenador regional da APEDEMA-RJ, membro do CONAMA e do COMAN.